06/04/2013

Matemática: Além do raciocínio dedutivo

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As razões mais frequentemente mencionadas para justificar o ensino da Matemática são:

1) A Matemática é necessária em atividades práticas que envolvam aspectos quantitativos da realidade;

2) A Matemática é importante porque desenvolve o raciocínio lógico.

A ideia de que o pensamento matemático se reduz a seus aspectos lógicos-dedutivos é incompleta e exclui o que há de mais rico nos processos de invenção e descoberta. O pensamento matemático vai muito além do raciocínio dedutivo. Em seus aspectos mais criativos, a Matemática depende da intuição e da imaginação, às vezes até mais que a dedução.

A intuição é a faculdade mental que permite obter o conhecimento de maneira direta, sem a intervenção do raciocínio. Os matemáticos frequentemente se referem a algum fato como "intuitivo", querendo com isso dizer que se trata de algo cuja veracidade é facilmente reconhecível. Mas é bom lembrar que "intuitivo" não é sinônimo de "fácil". Há muitas verdades profundas e difíceis que são apreendidas pela intuição.

A intuição é, na verdade, uma faculdade mental mais poderosa que o próprio raciocínio. É por meio dela que ocorrem as grandes criações do ser humano, nas artes, na filosofia e nas ciências. Henri Poincaré $(1854-1912)$, o mais eminente dos matemático de sua época, testemunhou bem isso, num artigo que escreveu sobre "criação matemática", em que ele conta várias de suas experiências como pesquisador. Uma dessas experiências ocorreu em suas tentativas de demonstrar certo teorema no estudo das chamadas "funções amorfas". Depois de vários dias de trabalho sem sucesso, ele interrompeu suas pesquisas para fazer uma excursão geológica com várias outras pessoas. Foi como se estivesse tirando umas férias da Matemática, passando dias distraído com outras coisas. Num dos momentos da viagem, segundo ele conta, veio-lhe à mente, de súbito, a ideia de utilizar, na demonstração de seu teorema, certos recursos matemáticos que já havia empregado tempos antes numa outra situação. E, ao voltar para sua casa, examinando detidamente essa ideia, pôde verificar que ela era realmente a chave da solução que procurava. A "ideia", de fato, tinha seu mérito.

Ideias são coisas que nos vêm por intuição. Uma ideia não se deduz, "se intui". Albert Einstein $(1879-1955)$ concebeu a ideia de que a velocidade da luz no vazio seria independente da velocidade da fonte luminosa e também a ideia de que o tempo não seria uma grandeza física absoluta, mas deveria ser entendido como ligado ao sistema de referência, do mesmo modo que o espaço. A partir desses dois postulados, ele construiu sua Teoria da Relatividade Restrita por deduções sucessivas. Outro exemplo mais conhecido e mais antigo de formulação axiomática em Física encontra-se na mecânica newtoniana, alicerçada nas chamadas três Leis de Newton $(1642-1727)$. Exemplos como esses existem em abundância na História das Ciências, não apenas na Matemática.

Em Matemática, particularmente, é muito comum o pesquisador comentar com um colega algum resultado novo que acredita ser verdadeiro, embora não disponha ainda de uma demonstração. O pesquisador, com sua experiência e familiaridade em determinada área de investigação, valendo-se das várias modalidades do raciocínio (indução, analogia, argumentos, ...) e da intuição, é levado a suspeitar da validade de um novo resultado ou teorema. A demonstração em geral é a etapa final, que completa o trabalho de investigação. Em muitas vezes, por não conseguir encontrar uma demonstração, o teorema tendo já adquirido credibilidade na comunidade matemática, impõe-se com o nome de "conjectura", "hipótese" ou mesmo "teorema". Há, assim, várias conjecturas ma literatura matemática, ou seja, resultados ainda não demonstrados, mas que os matemáticos acreditam serem verdadeiros. De vez em quando uma dessas conjecturas é demonstrada e muitas ainda continuam sem demonstração.

A conjectura mais famosa não resolvida até hoje é a chamada Hipótese de Riemann, formulada pelo matemático alemão Bernard Riemann $(1826-1866)$ em meados do século $XIX$.

Outra conjectura ainda não resolvida, e que pertence ao domínio da teoria dos números é a chamada Conjectura dos Primos Gêmeos. Primos Gêmeos são números primos que diferem por duas unidades, como $3$ e $5$, $5$ e $7$, $11$ e $13$, etc.. Suspeita-se que haja uma infinidade de tais pares de primos, mas até hoje não se conseguiu demonstrar isso.

O chamado "Último Teorema de Fermat" diz que não existem inteiros positivos $a$, $b$, $c$ e $n$, com $n>2$, tais que $a^n+b^n=c^n$. Esse teorema foi uma conjectura que desafiou os matemáticos por cerca de três séculos e meio, até ser resolvida em $1995$ pelo matemático Andrew Wiles $(1953-)$. Sua prova aparece no contexto de uma ampla teoria pertencente a duas importantes e difíceis disciplinas matemáticas, a Teoria dos Números e a Geometria Algébrica.

Outra importante conjectura é devida à Poincaré, já que foi formulada pelo ilustre matemático francês em $1904$, por isso é chamada de "Conjectura de Poincaré". Ela foi demonstrada verdadeira em $2006$ pelo matemático russo Grigory Perelman.

Intuição e imaginação são instrumentos tão importantes na invenção matemática como o são para o pintor que concebe um quadro, para um escritor que planeja uma obra literária ou para um músico em suas composições.

O ensino da Matemática é justificado pela riqueza dos diferentes processos de criatividade que ele exibe, proporcionando excelentes oportunidades de exercitar e desenvolver as faculdades intelectuais.

Mas a razão mais importante para justificar o ensino da Matemática é o relevante papel que esta disciplina desempenha na construção de todo o edifício do conhecimento humano. Desde os primórdios da civilização, o homem, como "ser pensante", sempre quis entender o mundo em que vive. Será que a Terra é plana? E como se suporta? Como explicar o movimento do Sol? E da Lua? A matéria é indefinidamente divisível ou constituída de "átomos" indivisíveis? Ou cada tipo de matéria é formada de alguns elementos básicos, como terra, água, fogo e ar?

Perguntas como essas certamente atormentaram o espírito humano por muitos milênios, até que, a partir do século $VIa.C.$, começaram a ser respondidas, e com muito sucesso. Foram ideias matemáticas simples de semelhança de figuras geométricas e proporcionalidade que permitiu Eratóstenes $(~287-212a.C.)$ calcular o tamanho da Terra. E a solução desses problemas mudou radicalmente a ideia do homem a respeito do mundo em que vivia.

As ideias de Copérnico $(1473-1543)$, Galileu $(1564-1642)$ e Kepler $(1571-1630)$ sobre o sistema solar, bem como os dados de observação de Tycho Brahe $(1546-1601)$, culminaram no so século $XVII$ com a teoria da Gravitação de Newton, que dava ao homem um novo e poderoso instrumento de compreensão do sistema solar. Os desenvolvimentos que se seguiram, sobretudo com trabalhos de Laplace $(1749-1827)$, iriam resgatar a antiga ideia de Pitágoras $(séc. VIa.C.)$ de que "o número é a chave para a compreensão dos fenômenos", pois ficava agora evidente que os movimentos dos planetas obedeciam a leis matemáticas precisas. Isso teve influência decisiva no pensamento racionalista do século $XVIII$, portanto, nas próprias concepções filosóficas dessa época. Voltaire $(1684-1778)$, que passou alguns anos de sua vida na Inglaterra, de lá voltou entusiasmado com muito do que viu, em particular com a obra de Newton, da qual foi um grande divulgador entre os franceses.

Ideias sobre a constituição da matéria ocorreram na antiguidade, sendo be, conhecidas de Leucipo e Demócrito, cuja eficácia só pode ser comprovada com o desenvolvimento da Química no século $XIX$. Novamente aqui temos o instrumental matemático como base das soluções de problemas.

Já no século $XX$, e graças a eficazes ideias matemáticas, novamente o homem alargou as fronteiras do mundo em que vive, calculando distâncias astronômicas fantásticas e formulando teorias cosmológicas que indicam que o universo em que vivemos teve origem há uns $14$ bilhões de anos.

Mais recentemente, os avanços da Biologia Molecular, alicerçados em ideias matemáticas, abrem perspectivas de progresso até há algumas décadas sonhados sobre os mistérios da vida, sobre a diversidade das espécies e sobre a engenharia genética.

Até mesmo em vários domínios da Arte a Matemática tem tido uma influência substancial e direta, como podemos observar nas obras de Leonardo da Vinci $(1452-1519)$ e Albrecht Dürer $(1471-1528)$, assim como na Arquitetura, Escultura e Música.

Particularmente na Pintura, foi graças a ideias matemáticas de paralelismo e projeção que os pintores de Renascença criaram a ciência da Perspectiva, que lhes tornou possível retratar em suas telas uma realidade marcada por intenso humanismo.

A descoberta de que a Matemática e a Música estão intimamente relacionadas remonta a Pitágoras. Mas foi somente no século $XVIII$ que a teoria musical encontrou bases seguras para se estruturar cientificamente e aqui, novamente, foram ideias matemáticas que permitiram uma interpretação científica dos fenômenos sonoros.

Esses vários exemplos mostram o quanto as ideias matemáticas  têm estado presentes na construção de todo o conhecimento, influenciando de maneira mais profunda e marcante nas próprias concepções filosóficas do homem diante de sua existência e no mundo em que vive. Por isso mesmo, o ensino da Matemática tem justificativas mais amplas e abrangentes que apenas aquelas duas citadas no início deste artigo:

$i)$ A Matemática deve ser ensinada nas escolas porque é parte substancial de todo o patrimônio cognitivo da Humanidade. Se o currículo escolar deve levar a uma boa formação humanística, então a Matemática é indispensável para que essa formação seja completa.

$ii)$ O ensino da Matemática se justifica ainda pelos elementos enriquecedores do pensamento matemático na formação intelectual do aluno, seja pela exatidão do pensamento demonstrativo que ela exibe, seja pelo exercício criativo da intuição, da imaginação e dos raciocínios por indução e analogia.

$iii)$ O ensino da Matemática é também importante para dotar o aluno do instrumental necessário no estudo das outras ciências e capacitá-lo no trato das atividades práticas que envolvem aspectos quantitativos da realidade.

É claro que uma pessoa pode prescindir de conhecimento matemático e mesmo assim ser um grande ator, escritor ou estadista, mas certamente seus horizontes culturais serão mais restritos. O mesmo ocorre a uma pessoa que tenha competência matemática mas tenha pouco ou quase nada de conhecimento humanístico, tendo seus horizontes culturais limitados.

Referências:

  • Várias Faces da Matemática - Tópicos para Licenciatura e Leitura Geral - Geraldo Ávila - 2ª Edição - Editora Blucher

Veja mais: 

COMO REFERENCIAR ESSE ARTIGO: Título: Matemática: Além do raciocínio dedutivo. Publicado por Kleber Kilhian em 06/04/2013. URL: . Leia os Termos de uso.


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4 comentários:

  1. Li com calma o texto acima e agora tenho profunda convicção de que sou muito intuitivo nas descobertas matemáticas. Quando digo descobertas matemáticas não estou referindo somente os teoremas inéditos para todo mundo, mas aqueles que são inéditos para mim, pois a matemática também é uma experiência pessoal em que cada um deve buscar o caminho para a perfeição.

    Os exemplos citados acima dos grandes matemáticos e físicos que desenvolveram teorias com base intuição, somente comprova que ela é muito mais poderosa que o próprio formalismo que vem depois.

    As três últimas justificativas sobre o ensino da Matemática são belíssimas e encerra com chave de ouro o artigo.

    Parabéns pelo post e pelos links citados acima.

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  2. Olá Paulo! Realmente o texto é belíssimo, não pude deixar de publicá-lo.

    Sua contribuição para a Matemática é muito importante. Seu blog é um dos melhores do Brasil e traz muita das suas descobertas, que podemos ver muito de seu conhecimento. Parte disso podemos ver em seu livro A História do Cálculo, e em tantos outros artigos que publicou.

    Obrigado pelo comentário!

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  3. Uma grande pena que a intuição e a imaginação sejam vilanizadas na academia nos dias de hoje.

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  4. Lendo o seu blog pude perceber porque estamos nos piores índices em educação no mundo. Pois o desenvolvimento matemático também é responsável por vários outras partes do desenvolvimento humano. É se um aluno não desenvolve bem a matemática provavelmente não se sairá bem em outras partes do conhecimento. É portanto o Brsil está em gravíssima situação. Com as escolas com um péssimo ensino da Matemática. Tá difícil.

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