02/11/2015

A arte de contar histórias em desenhos e o Teorema de Pitágoras

O povo Tchokwe habita predominantemente o nordeste de Angola e partes do noroeste da Zâmbia e as áreas adjacentes do sul da República do Congo. São conhecidos pelos seus trabalhos decorativos, nomeadamente em variadas peças de arte e artesanato e em desenhos na areia conhecidos como sona (plural de lusona). Estes desenhos de areia fazem parte da tradição oral Tchokwe. Servem antes de mais nada como memória no contar histórias. Os sona são desenhados por homens. Os rapazes aprendem a contar histórias e a desenhar sona como parte do seu ritual de iniciação. Os principiantes aprendem dos mestres de desenho a quem chamam akwa kuta sona.



Os sona são normalmente gráficos delineáveis que podem ser desenhados sem levantar o dedo ou passar duas vezes por cima da mesma linha. Para fazer um lusona, o artista começa por alisar a areia e usar a ponta dos dedos para criar uma grelha de pontos equidistantes, chamados tobe, que servem como suporte para o lusona. A imagem acima mostra uma grelha de tobe e o desenho final representando a amizade.

A história dos Tchokwe para o princípio do mundo

Um dia, o Sol foi visitar Deus. Então, Deus deu uma galinha ao Sol e disse-lhe: "Volte de manhã antes de te ires embora". Pela manhã, a galinha cacarejou e acordou o Sol. Quando o Sol foi ter com Deus, este disse-lhe: "Não comeste a galinha  que te dei para o jantar. Podes ficar com ela, mas tens de a trazer aqui todos os dias". É por isso que o Sol dá a volta à terra e se levanta todas as manhãs.

A Lua também foi visitar Deus e recebeu uma galinha. De manhã, a galinha cacarejou e acordou a Lua. Mais uma vez Deus disse: "Não comeste a galinha que te dei para o jantar. Podes ficar com ela mas tens de voltar aqui a cada $28$ dias". É por isso que os ciclos da Lua demoram $28$ dias.

O Homem também foi visitar Deus e ganhou uma galinha. Mas o Homem estava com fome, depois de uma jornada tão longa e comeu parte da galinha ao jantar. Na manhã seguinte, o Sol já ia alto no céu quando o Homem acordou, comeu o resto da galinha e apressou-se a visitar Deus. Então, Deus disse: "Não ouvi a galinha a cacarejar esta manhã". O Homem respondeu temerosamente: "Estava com tanta fome que a comi". E recebeu a resposta: "Não faz mal, mas ouve: sabes que o Sol e a Lua estiveram aqui e nenhum deles matou a galinha que lhes dei. É por isso que nunca morrerão. Mas tu mataste a tua e como tal tens de morrer como ela. Mas quando morreres vais ter de voltar aqui". E assim aconteceu.


Nesta imagem Deus é representado acima, à esquerda o Sol, à direita a Lua e em baixo o Homem. O lusona representa o caminho de Deus.

A história do leopardo e da cegonha


Um dia, o leopardo Kajama pediu à cegonha Kumbi algumas penas para forrar a sua toca. Uns dias mais tarde, a cegonha pediu ao leopardo um bocado da sua pele. Quando Kajama satisfez o pedido da cegonha, morreu. O filho de Kajama tentou vingar a morte do pai, mas Kumbi, que conhecia muito bem o pântano, conseguindo escapar.


No desenho acima, a linha ondulada é o trajeto da cegonha Kumbi em fuga. Os pontos representam o pântano através do qual Kumbi fugiu.

A história do galo e do raposo

O galo Kanga e o raposo Mukuza pretendiam a mesma mulher. Pediram-na em casamento ao pai dela, que exigiu de ambos pagamento adiantado. Eles concordaram prontamente. De repente correu o boarto de que a prometida tinha falecido. Kanga rompeu num choro inconsolável, enquanto Mukuza apenas lamentava ter perdido o pagamento adiantado. Então o pai, que de propósito tinha espalhado o boato para ver quem merecia a filha, entregou-a ao galo, que revelou ter bom coração.


História da visita do galo ao Sol

O galo visitou o Sol. Outras aves tentaram, mas apenas o galo conseguiu. Ficaram amigos e ainda hoje o galo canta ao romper o Sol.


Os Sona no cotidiano

Muitos dos sona estão ligados diretamente ao cotidiano:





Veja outros sonas aqui.

O desenho de soleira chamada “mesa  giratória”, ilustrado na abaixo é formado por três linhas “que  nunca terminam” sobrepostas. Quando se criam junções em $S$ e $T$ no eixo horizontal de simetria, aparece o provável padrão original feito com uma única linha.

O Teorema de Pitágoras

 Muitos sona são frutos da simetria rotacional, isto é, as figuras coincidem com elas mesmas após uma rotação de $90^\circ$, $180^\circ$ e $270^\circ$. Por exemplo este motivo tradicional do Gana:

Seguindo Paulus Gerdes, vamos mostrar como um motivo com este tipo de siemetria podo induzir a uma prova do Teorema de Pitágoras. O processo descrito por Gerdes é de sua autoria, mas mostra como a matemática pode estar implícita na cultura e como resultados universais se podem motivar com elementos tradicionais.

Iniciemos com um motivo pitagorizável moçambicano simples com quatro circunferências, onde o centro de cada uma delas está sobre cada um dos vértices de uma quadrado.

Escolhemos um ponto sobre uma das circunferências e os outros três são frutos de uma rotação de um quarto de volta.

Unimos os quatro pontos formando um quadrado e determinando outros novos quatro pontos.

Agora unimos os outros quatro novos pontos, obtendo um quadrado circunscrito no primeiro.


Contudo, também poderíamos unir estes pontos de outra forma, obtendo a seguinte figura:

Note que, devido à simetria rotacional da figura de partida, os quatro quadriláteros em que o quadrado foi dividido são iguais:

Além disso, as transversais que definem a decomposição do quadrado são perpendiculares entre si. Vejamos como podemos reorganizar estes quatro quadriláteros de maneira a obter um quadrado maior.


Seja $\ell$ a medida do lado do quadrado e seja $t$ a medida da transversal. Podemos mover os quadriláteros obtendo um quadrado de lado $t$, com um buraco quadrado de lado $q$ no interior.

Como $q = b-a$, podemos obter um triângulo retângulo da seguinte forma:


 Esse triângulo retângulo possui hipotenusa igual a $t$, que é a transversal do quadrado original, um dos catetos igual a $\ell =a+b$, que é o lado do quadrado original e o outro cateto igual a $q$, que é o lado do quadrado menor formado após as rotações. Assim, podemos construir quadrados sobre cada lado desse triângulo:


E isso é o mesmo que dizer que: $t^2 = \ell^2 + q^2$, ou seja, o quadrado sobre a hipotenusa é igual à soma dos quadrados sobre os catetos.

Referências

[1] Geometria Sona de Angola, V3 - Paulus Gerdes, Editor Lulu
[2] A arte de contar histórias com desenhos
[3] Matemática africana

Veja mais

As figuras de Kolan e o bracelete de Krishna
A Fórmula de Pick e a Aproximação de π
O problema dos quadrados mágicos



COMO REFERENCIAR ESSE ARTIGO: Título: A arte de contar histórias em desenhos e o Teorema de Pitágoras. Publicado por Kleber Kilhian em 02/11/2015. URL: . Leia os Termos de uso.


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6 comentários:

  1. Prezado Kleber,
    Interessante artigo sobre a cultura do povo Tchokwe e seus belos desenhos que contam histórias, e a maneira de amarrar esse assunto com o teorema de Pitágoras. Contar histórias é uma excelente forma de ensinar matemática. Sucesso!

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  2. Parabéns.

    Esse artigo me lembrou um jogo chamado mancala. Tem tradição na África. Possui estratégias de vitória.

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  3. Belas historias. Descobri esse blog para jamais esquecê-lo. Aos amantes das ciências exatas, recomendo esse site.

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  4. Muito grata, artigo interessantíssimo. Vou usar nas minhas pesquisas

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  5. Interessante e conteúdo à levar em pesquisas pra ajudar o desenvolvimento das ciências Ancestrais.

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