04/05/2025

A consolidação do rigor no Cálculo: de Cauchy a Weierstrass

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O Cálculo, tal como foi deixado por Newton e Leibniz, carecia quase totalmente de estruturação lógica. E nos 150 anos seguintes, muito pouco mudou quanto a esse aspecto. Embora houvesse consciência, em todo esse tempo, da necessidade de demonstrações e justificativas, estas frequentemente não correspondiam aos padrões atuais de rigor, apelando demasiado para a intuição geométrica.

Assim, por muito tempo, a confiança no cálculo derivava sobretudo de sua eficácia na resolução de problemas físicos e astronômicos. Um episódio envolvendo o matemático e astrônomo Edmund Halley (1656-1742) e o bispo George Berkeley (1685-1753) ilustra bem essa situação. Halley, talvez movido por concepções materialistas inspiradas na ciência da época (em que o cálculo tinha papel especial), teria convencido alguém em seu leito de morte a recusar o consolo espiritual que lhe seria ministrado por Berkeley. Este, exímio polemista, expressou sua irritação no livro O Analista: ou um discurso dirigido a um matemático infiel (1734), no qual argumentou que o cálculo, em sua forma então vigente, era tão dependente de abstrações não fundamentadas quanto a teologia. Berkeley criticou duramente os "fantasmas de quantidades evanescentes" – uma referência irônica aos infinitesimais, que pareciam surgir e desaparecer conforme a conveniência nos cálculos de Newton e Leibniz.

Essa crítica não era injustificada. Os infinitesimais, tratados ora como quantidades não nulas, ora como zeros, eram usados de forma inconsistente. Embora práticos, faltava-lhes uma base lógica, o que alimentava debates filosóficos sobre a natureza do conhecimento matemático. O próprio Leibniz reconhecia a necessidade de justificar melhor seus métodos, mas a tecnologia matemática da época ainda não permitia tal avanço.

De fato, não havia explicação satisfatória para o fato de Newton, em seu Quadratura de Curvas, operar algebricamente com um incremento $h$ e, ao final, simplesmente considerar $h = 0$, descartando termos que o continham. Da mesma forma, a razão $dy/dx$, segundo Leibniz, era tratada como a inclinação da tangente, embora sua definição inicial a relacionasse a uma secante. Berkeley via nisso uma contradição, afirmando sarcasticamente que os matemáticos chegavam à verdade "em virtude de um erro duplo".

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D'Alembert e a Semente do Rigor

D'Alembert (1717-1783), em sua busca por uma fundamentação mais sólida, teria dito: "Avante, e a fé lhe virá", sugerindo que os matemáticos deveriam prosseguir mesmo sem total clareza conceitual, confiando que o rigor surgiria com o tempo. No entanto, ele já antevia que a solução para as inconsistências do cálculo estaria na teoria dos limites – uma ideia que só seria plenamente desenvolvida no século seguinte.

D'Alembert também contribuiu para a formalização do conceito de derivada, aproximando-se da ideia de limite ao descrever a tangente como o limite das secantes. No entanto, sua abordagem ainda era intuitiva, sem a precisão simbólica que caracterizaria o trabalho de Cauchy.


O Concurso de Berlim e a Busca por Fundamentos

Em 1784, a Academia de Ciências de Berlim promoveu um concurso sobre o problema do infinito em matemática, buscando uma explicação para como tantos teoremas corretos serem "deduzidos de suposições contraditórias". O vencedor foi o suiço Simon L'Huillier, com o trabalho Exposição elementar do cálculo superior, onde propôs uma notação mais clara para derivadas $\displaystyle \frac{dP}{dx}=\lim \left(\frac{\Delta P}{\Delta x}\right)$, mas sua abordagem ainda não resolvia as questões conceituais mais profundas.

O concurso refletia a crescente inquietação entre os matemáticos do século XVIII. Embora o cálculo fosse amplamente aplicado em mecânica celeste, hidrodinâmica e outras áreas, sua base teórica permanecia obscura. L'Huillier, apesar de não ter revolucionado o campo, ajudou a consolidar a linguagem dos limites, pavimentando o caminho para Cauchy.


Cauchy e a Revolução do Rigor

Natural de Paris, Augustin-Louis Cauchy (1789-1857) estudou na Escola Politécnica e, a despeito de seu grande talento para a ciência pura, chegou a encetar uma promissora carreira de engenheiro, abandonada em 1815 por razões de saúde. Nesse mesmo ano inicia-se como professor na Escola Politécnica, afinal, a essa altura, seu currículo já exibia vários trabalhos de valor no campo da matemática. No ano seguinte aceita sua indicação para a Academia de Ciências, mesmo sendo para o lugar de Monge, excluído por razões políticas. Mas era coerente: em 1830, com a expulsão de Carlos X, exila-se voluntariamente. Já de volta à França há cerca de dez anos, em 1848 passa a ocupar uma cadeira na Sorbonne, da qual é excluído em 1852 por sua recusa em jurar fidelidade ao governo (em 1854 foi readmitido sem essa exigência).

Cauchy deixou cerca de 800 trabalhos entre livros e artigos, cobrindo quase todos os ramos da matemática, um feito talvez só superado por Euler. Mas suas contribuições mais significativas estão na área do cálculo e da análise, sempre pautadas pela preocupação com o rigor e a clareza. Um exemplo disso está na sua abordagem das séries, com o cuidado que dispensou à questão da convergência.

Cauchy, então, deu o passo decisivo. Em seu Curso de Análise (1821), um livro-texto feito para a Escola Politécnica, ele apresentou a primeira definição formal de limite, substituindo a recorrente linguagem vaga, por exemplo "aproximar-se indefinidamente" e "tão pequeno quanto se deseje", por uma estrutura lógica precisa. Cauchy também estabeleceu definições rigorosas para continuidade, derivada e integral, tratando-as como limites de sequências e funções.

Cauchy não apenas formalizou os conceitos centrais do cálculo, mas também demonstrou teoremas fundamentais, como o Teorema do Valor Intermediário e o Teorema do Valor Médio, com um nível de rigor inédito. Sua abordagem aritmética – evitando dependência excessiva da geometria – marcou o início da análise matemática como disciplina autônoma. No entanto, seu trabalho ainda tinha lacunas: ele às vezes assumia a convergência de séries sem critérios claros e usava linguagem ainda um pouco intuitiva em suas demonstrações.


Weierstrass: O Arquiteto do Rigor Moderno

Natural do povoado de Ostenfeld, Alemanha , Karl Weierstrass (1815-1897) era filho de um inspetor de alfândega autoritário que desejava vê-lo num alto posto administrativo — tanto mais que sua passagem pela escola secundária fora brilhante. Mas Weierstrass não deu essa alegria ao pai, embora tivesse ficado de 1834 a 1838 em Bonn matriculado no curso indicado (leis, que afinal não concluiu). Em 1839 habilitou-se para o ensino médio de Matemática em curso intensivo no qual teve como professor C. Guderman (1798-1852), especialista em funções elípticas, seu grande inspirador.

Paralelamente ao exercício do magistério secundário, Weierstrass lançou-se à pesquisa. E seus trabalhos pouco a pouco foram-no fazendo conhecido: em 1855 obtinha um doutorado honorário na Universidade de Königsberg e em 1856 tornou-se professor da Universidade de Berlim, onde ensinaria nos 30 anos seguintes.

Weierstrass publicou pouco, comparado a Cauchy. Mas sua obra distingue-se pela qualidade e, em especial, pelo rigor. Os últimos resquícios de imprecisão que ainda acompanhavam os conceitos centrais do cálculo, como o de número real, função e derivada, por exemplo, foram eliminados por ele.

Sua grande contribuição foi a formalização da definição $\varepsilon - \delta$ de limite, que eliminou qualquer resquício de ambiguidade sobre "aproximações infinitas". Weierstrass também:

  • Definiu com precisão o conceito de número real, embora a construção completa só viesse com Dedekind e Cantor.
  • Desenvolveu a teoria de funções analíticas, fundamentando a análise complexa.
  • Criou exemplos patológicos, como a função contínua em toda parte mas diferenciável em nenhuma, mostrando a necessidade de rigor extremo.

Sob sua influência, a matemática do século XIX abandonou de vez a intuição como justificativa, adotando demonstrações axiomáticas e definições precisas. Se Cauchy foi o visionário que lançou as bases do rigor, Weierstrass foi o artesão que poliu cada detalhe.


O Legado Duradouro

O trabalho de Cauchy e Weierstrass não apenas resolveu as críticas de Berkeley, mas transformou a matemática em uma disciplina de precisão incontestável. Suas ideias permitiram o desenvolvimento de áreas como análise real, topologia e teoria da medida no século XX. Hoje, mesmo com avanços como a análise não padronizada (que reintroduz infinitesimais de forma rigorosa), o alicerce construído por eles permanece essencial.


Referências:
  • Fundamentos de Matemática Elementar V8 - Limites, Derivadas, Noções de Integral - Iezzi, Murakami e Machado
  • The History of the Calculus and Its Conceptual Development - Carl Boyer
  • Biografia de Cauchy: https://mathshistory.st-andrews.ac.uk/Biographies/Cauchy/
  • Biografia de Weierstrass: https://mathshistory.st-andrews.ac.uk/Biographies/Weierstrass/
  • História do Cálculo: https://en.wikipedia.org/wiki/History_of_calculus
COMO REFERENCIAR ESSE ARTIGO: Título: A consolidação do rigor no Cálculo: de Cauchy a Weierstrass. Publicado por Kleber Kilhian em 04/05/2025. URL: . Leia os Termos de uso.


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