A escola pitagórica provou que $\sqrt{2}$ não é um número racional. Mas nem por isso descobriu os números irracionais. E como os gregos de então, ao contrário de babilônios e egípcios, não eram de se contentar com aproximações, desprovidas de significado teórico, enveredaram pela geometria para superar esse impasse.
➔ Leia o artigo: Eudoxo e os incomensuráveis.
Assim, os gregos do período clássico, ao resolverem a equação $x^2=2$, por exemplo, faziam-no geometricamente, fornecendo a raiz positiva como um segmento de reta. E se hoje dizemos "$x$ ao quadrado" para indicar $x^2$, isso se deve a que os gregos associavam um produto de fatores iguais à figura de um quadrado. Coisa análoga vale para $x^3$.
Mas a ciência aplicada não pode prescindir da matemática numérica. De modo que já no período alexandrino, quando a matemática grega se abriu para as aplicações, não lhe restou senão imitar a atitude de egípcios e babilônios com relação aos números irracionais — pois ainda demoraria muito tempo até que a natureza destes fosse decifrada.
Assim é que até a primeira metade do século $XIX$ o conceito de número irracional não havia ainda sido elucidado e o conjunto dos números reais carecia de fundamentação lógica. A substituição da intuição geométrica pelos números, como base de análise matemática, foi a grande motivação, no século $XIX$, para as tentativas de pôr em pratos limpos a questão dos números reais. E entre os matemáticos com papel decisivo nessa empreitada figura Richard Dedekind (1831-1916).
Dedekind nasceu na Alemanha, em Brunswick, também cidade natal de Gauss. Mas, ao contrário deste, seu extraordinário gênio matemático não aflorou precocemente. Na Universidade de Göttingen, em que ingressou aos 19 anos de idade, Dedekind iria ter a oportunidade de ser aluno de seu conterrâneo. E o mesmo Gauss, em 1852, teve ocasião de dar parecer favorável à tese de doutoramento de Dedekind.
Depois de trabalhar quatro anos em Göttingen como instrutor e seis anos como professor na Escola Politécnica de Zurique, Dedekind foi contratado pela Escola Técnica Superior de sua cidade natal, onde permaneceu até sua morte.
São inúmeras as contribuições de Dedekind à Matemática. Mas seu nome provavelmente é mais lembrado por dois importantes conceitos:
- o de ideal, um dos mais fecundos hoje em dia em todos os campos da Matemática;
- e o de corte, através do qual caracterizou, num livro de 1872, os números reais.
Como professor de Cálculo, já a partir de 1858, sentiu mais diretamente a falta de um embasamento teórico para o sistema dos números reais. Exemplificava dizendo não haver uma demonstração sequer para coisas corriqueiras como $\sqrt{2} \cdot \sqrt{3} = \sqrt{6}$. E a questão central era como esclarecer a ideia de continuidade.
Depois de meditar muito, não sem buscar inspiração em Eudoxo, Dedekind abraçou a ideia de que se poderia chegar ao conceito de continuidade através de convenientes partições em $\mathbb{Q}$. E definiu um corte em $\mathbb{Q}$ como uma partição deste conjunto num par $(A,B)$ de subconjuntos não vazios tais que todo elemento do primeiro é menor que todo elemento do segundo. Por exemplo, para cada $a \in \mathbb{Q}$ está associado o corte racional $(A,B)$ definido para $a$, em que:
- $A = \{x \in \mathbb{Q} | x \leqslant a\}$ e
- $B = \{x \in \mathbb{Q} | x > a \}$
Mas não vale a recíproca: há cortes não racionais.
Dedekind mostrou como operar com esses cortes e como compará-los. Desse modo cada corte passa a representar formalmente um número real e o conjunto desses cortes pode ser visto como o conjunto dos números reais. Por exemplo, o corte $(A,B)$ do exemplo representa o número racional $a$; os cortes não racionais são os números irracionais da teoria de Dedekind.
Os mais de 2.000 anos decorridos desde o início até o fim desta história dão bem uma ideia da magnitude do passo dado por Dedekind.
➔ Leia o artigo: Classificação dos números decimais
Referências:
- Fundamentos de Matemática Elementar, V1 - Gelson Iezzi & Carlos Murakami
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